A análise de transplantes jurídicos por Yves Dezalay e Bryant Garth

Canal Sul
7 min readFeb 15, 2022

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Por: Julia Malacrida | Revisão: Odara Andrade

Em “The Import and Export of Law and Legal Institutions: International Strategies in National Palace Wars[1], os autores Yves Dezalay e Bryant Garth tratam da questão dos obstáculos culturais impostos aos transplantes jurídicos e da transformação de culturas jurídicas pelo acúmulo de transplantes. Em sua análise, os autores rejeitam a chave de análise da “cultura jurídica” para analisar “transplantes jurídicos”, preferindo adotar os conceitos de “importação” e “exportação”.

Eles tratam do tema a partir da análise de casos em diferentes países observando: a importância dos agentes que promovem esses transplantes, as relações de poder econômico e político que ajudam a determinar o valor de determinadas exportações e importações, e o papel da academia na legitimação das abordagens seguidas.

Os autores ilustram sua tese com exemplos de transplantes que consideram de sucesso, como é o caso do modelo do escritório de advocacia corporativo baseado nos escritórios de Wall Street trazido para o México por uma elite de advogados[2]; e a arbitragem comercial internacional, antes considerada “litígio negligente” nos EUA, mas difundida no país latino-americano por aspirantes a importadores com vínculos com a Câmara de Comércio Internacional de Paris. Dentre os exemplos de sucesso fora do mundo corporativo, Dezalay e Garth citam a adoção da mediação compulsória no judiciário e o escritório de litígio de interesse público na Argentina[3].

Em contraposição, como exemplos de transplantes insuficientes, mencionam os esforços abandonados da US AID e Ford Foundation para impor o modelo estadunidense de professor de direito e advogado no Brasil e no Chile, ou o esforço infrutífero de atores como o Banco Mundial de implementar instituições para treinar e regular o judiciário na América Central, América Latina e no Leste Europeu, com o objetivo de estabelecer tribunais independentes e eficientes que protejam e estimulem investimentos[4].

O objetivo dos autores é identificar quais elementos causariam complicações a esses transplantes.

A primeira complicação apresentada é a terminologia: os quadros de referência partem da instituição do centro, tornando o transplante uma instituição que se assemelhe ao seu homônimo. Os acadêmicos servem como agentes duplos nesse processo, definindo os critérios segundo os quais o transplante deve ser executado. Na América Latina, por exemplo, o problema dos agentes duplos está ligado à atuação de empresários que importam ideias jurídicas com o objetivo de construir seu próprio poder e influência em seu país[5].

Os autores demonstram ainda como os processos de importação e exportação podem ser competitivos e complementares de guerras palacianas locais, nas quais os agentes de importação lutam pelo poder e influência local usando do prestígio e legitimidade de ideias estrangeiras, como ilustrado pelos casos, já mencionados, dos advogados corporativos no México absorvidos pela política de uma elite dividida pela Revolução Mexicana; dos árbitros nos Estados Unidos absorvidos por disputas comerciais; do entusiasmo da mediação na Argentina absorvido pela política menemista; do escritório de advocacia de interesse público que se misturou ao mundo da política argentina; e os beneficiários brasileiros do ensino jurídico do direito e desenvolvimento que perpetuaram o domínio de uma elite[6].

Os autores concluem que não há uma generalização na literatura para explicar por que certos transplantes jurídicos têm mais ou menos sucesso. Na escolha de quais institutos serão importados para outros países, parece, no entanto, ser dada uma vantagem aos transplantes de origem norte-americana. Essa vantagem não estaria relacionada a questões de afinidade entre culturas jurídicas, mas ao surgimento nos anos 1980 de um mercado global de especialistas e expertises e um mercado de ideias altamente competitivo dos EUA que confere legitimidade aos institutos jurídicos exportados.

Para os autores, o sucesso desses transplantes na América Latina, por exemplo, pode ser impactado pelo fato de que as ideias dos intelectuais no Sul não seriam testadas em um ambiente de intensa competição acadêmica, mas decorreriam de relações pessoais entre professores e alunos, o que as colocaria em desvantagem[7].

Da mesma forma, os exemplos de falhas mencionados têm como instituições alvo tribunais e faculdades de direito que permanecem fora do mercado global de especialização. Da perspectiva dos autores, o grau em que as instituições de um país importador estão inseridas nesse mercado é crítico para a geração de importações e exportações ao estilo dos Estados Unidos[8].

Assim, ainda que os importadores utilizem dessa expertise importada em guerras palacianas locais, isso não é suficiente para garantir que o instituto transplantado funcione da mesma forma que em seu país de origem. O processo é complexo e depende de vários fatores, mas o ponto central seria a legitimidade do direito — que nos Estados Unidos estaria em um mercado competitivo e multidisciplinar de ideias acadêmicas e na América Latina estaria em relações interpessoais de poder e influência entre elites econômicas e políticas e o Estado.

Para os autores é suficiente, no entanto, em vez de tentar examinar essas forças na competição global, apontar que o lugar dos transplantes jurídicos depende necessariamente da estrutura de poder do Estado em que são colocados. O objetivo é, portanto, empregar uma abordagem estrutural que possa analisar como as estratégias internacionais são executadas e transformam as estruturas locais[9].

O tema dos transplantes tratado por Dezalay e Garth não é novo, mas tampouco caiu em desuso, continuando uma ferramenta importante em políticas de desenvolvimento.[10]. Apesar disso, o texto estabelece um novo marco. É interessante ver como os autores se afastam das discussões sobre a adaptabilidade cultural dos transplantes, concentrando-se em outros temas: os agentes responsáveis por esses transplantes e questões de poder.

Nesse ponto, o texto de Dezalay e Garth se conecta com algumas outras agendas de pesquisa, como o papel central dado aos advogados por Pistor[11], sem, entretanto, deixar de reconhecer o papel da academia na construção e legitimação desses institutos exportados, assim como ressaltado por Ghirardi[12] e por Milhaupt e Pistor[13].

Aponta-se, no entanto, que o argumento sintético do papel da academia poderia ter sido mais explorado por Dezalay e Garth no texto em questão. A competição da academia jurídica nos EUA e a importância desse aspecto para a sua influência de transplantes jurídicos gerados ali para outros países é uma discussão relevante. Ainda há espaço para um aprofundamento sobre como essa influência em temas de desenvolvimento em diversos países é pensada pela própria academia; qual seu papel em incentivar ou não determinadas agendas de pesquisa; como os agentes promotores de importação e exportação estão sendo formados (em termos de currículo e metodologia); ou quais os impactos de um ensino jurídico elitizado.

Da mesma forma, Dezalay e Garth explicam que as políticas de instituições de fomento, como a Ford Foundation, tiveram um papel importante na reorientação do poder acadêmico global para os Estados Unidos, transformando a forma como a produção acadêmica foi legitimada na América Latina. A explicitação dessa relação é muito importante, considerando que, à data de publicação e ainda hoje, instituições de fomento, incluindo o FMI e o Banco Mundial, injetavam grandes quantias em projetos de transplante por todo o mundo. Os autores trazem um questionamento que ainda pode ser mais explorado quanto aos interesses que podem estar por trás desses investimentos, da legitimidade dessas instituições em fomentarem esses transplantes, ou da forma como determinados projetos foram ora incentivados, ora abandonados.

Por fim, é interessante notar que, apesar de tratar sutilmente do papel do Estado em políticas de desenvolvimento, dando protagonismo à influência e atuação de atores privados sobre as instituições, o texto remete às relações de influência entre o Norte e o Sul global apontadas por Eslava[14], apontando como, muitas vezes, os agentes do transplante fazem parte de uma elite que usa dos próprios institutos transplantados para exercer uma influência política no Estado e, por vezes, para se inserir à máquina pública. Em conclusão, ilustra como os âmbitos público e privado se conectam e, por vezes, se misturam quando o assunto é o direito e desenvolvimento.

O texto “The Import and Export of Law and Legal Institutions: International Strategies in National Palace Wars” de Yves Dezalay e Bryant Garth estabelece, portanto, um marco na literatura sobre direito e desenvolvimento, na medida em que traz novos elementos para a discussão sobre os fatores que podem influenciar o sucesso ou fracasso de transplantes jurídicos e os aspectos políticos e institucionais por trás da importação e exportação de institutos do Norte para o Sul global.

  • Julia Carolina Malacrida de Pádua é bacharela em Direito pela USP e atualmente é Pesquisadora do Fundação Getúlio Vargas. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Público.

[1] GARTH, Bryant; DEZALAY, Yves. The Import and Export of Law and Legal Institutions: International Strategies in National Palace Wars. Adapting Legal Cultures, Hart Publishing, 2001, pp. 241–254.

[2] Idem, pp. 243–244.

[3] Idem, pp. 244–245.

[4] Idem, p. 245.

[5] Idem, pp. 246–247.

[6] Idem, pp. 249–250.

[7] Idem, pp. 250–251.

[8] Idem, p. 252.

[9] Idem, pp. 252–253.

[10] Um exemplo da atualidade da discussão é o do whistleblowing. Surgido nos Estados Unidos no século XIX com o False Claims Act, o instituto foi recentemente objeto da Diretiva 201/1937 da União Europeia e há diversos atores governamentais e não-governamentais, incluindo a OCDE, recomendando a sua implementação. Cf. OCDE. Committing to Effective Whistleblower Protection in the Public and Private Sectors, 2016. Disponível em: <https://www.oecd.org/corporate/committing-to-effective-whistleblower-protection-9789264252639-en.htm>.

[11] PISTOR, K. The code of capital: how the law creates wealth and inequality (cap. 7 — The master of the code). Princeton and Oxford, 2019, pp. 158–182.

[12] GHIRARDI, Jose Garcez. Os mestres dos “mestres do capital”: o papel da universidade no funcionamento do codigo do capital. In: Decodificando o código do capital de Katharina Pistor a partir do Brasil. Sao Paulo, FGV Direito SP, 2020, pp. 137–156.

[13] MILHAUPT, Curtis; PISTOR, Katharina. Rethinking the Relation Between Legal and Economic Development. In Law and Capitalism: What Corporate Crises Reveal about Legal Systems and Economic Development around the World. University of Chicago Press, 2008, capítulos 1 e 2, pp. 17–44

[14] ESLAVA, Luis. The Developmental State: Independence, Dependency, and the History of the South. In The Battle for International Law: South-North Perspectives on the Decolonization Era. : Oxford University Press, 2019, pp. 1–34.

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