A reforma do Poder Judiciário na perspectiva do paradoxo das reformas

Canal Sul
7 min readFeb 18, 2022

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Por: Lívia Boruchovitch Fonseca | Revisão: Odara G. de Andrade

O artigo “PRADO, Mariana. O Paradoxo das Reformas do Estado de Direito: quando reformas iniciais se tornam obstáculos para reformas futuras, Revista De Sociologia e Política , v. 21, n. 45, 2013, pp. 73–90” foi escrito por Mariana Mota Prado em 2013 e traz reflexões importantes sobre as reformas institucionais e o desenvolvimento, em especial para o Brasil.

Mariana Mota Prado é uma professora brasileira, formada em Direito pela Universidade de São Paulo, tendo obtido seu mestrado e doutorado (LLM e JSD, respectivamente), na Yale Law School. Atualmente, Mariana é professora da Faculdade de direito da Universidade de Toronto e realiza pesquisas principalmente em assuntos como direito e desenvolvimento, corrupção e direito comparado. O artigo “O Paradoxo das Reformas do Estado de Direito: quando reformas iniciais se tornam obstáculos para reformas futuras” se relaciona com as áreas de concentração de pesquisa da professora.

A ideia central do artigo é a de que reformas fragmentadas podem criar obstáculos a reformas posteriores, na medida em que permitem a criação de práticas, valores e atitudes que bloqueiam reformas futuras, bem como o fortalecimento de grupos de interesse que farão resistência a novas reformas (PRADO, 2013, p.74). Esse argumento utiliza como pressuposto as ideias de Trebilcock e Daniels, de que três obstáculos principais às reformas (i) falta de recursos financeiros, tecnológicos ou humanos, (ii) fatores sociais, culturais e históricos que fomentam uma baixa receptividade a reformas; (iii) impedimentos de economia política (PRADO, 2013, p. 74). Com o artigo, a autora não pretende argumentar que as reformas fragmentadas devem ser sempre preteridas em relação às integrais, uma vez que ela reconhece que algumas vezes as reformas fragmentadas são as únicas disponíveis, diante do alto risco das reformas integrais (PRADO, 2013, p.74–75).

Para fundamentar seu argumento, Mariana Mota Prado apresenta um estudo de caso da reforma do judiciário brasileiro. Segundo a autora, o constituinte de 1988 tinha como objetivo assegurar a independência judicial, depois de um período de interferência nesse poder durante a ditadura militar. Com isso, criou-se dificuldades de implementação de uma segunda geração de reformas, pautada pela ideia de accountability do Poder Judiciário (PRADO, 2013, p.75). Segundo Prado, a resistência às reformas de accountability, teria ocorrido pela crença do valor da independência judicial, pela resistência de membros do Poder Judiciário em abrir mão de seus privilégios e pela existência de práticas escusas nesse Poder, incluindo a corrupção. Apenas em 2004 foi possível a aprovação da criação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), com a inclusão de membros externos ao Poder Judiciário (PRADO, 2013, p.76–79).

A autora parte da distinção entre reformas integrais — que tentam promover dois objetivos políticos simultaneamente — e reformas fragmentadas ou sequenciais — que tentam favorecer um objetivo em detrimento do outro — para responder à pergunta de se é possível evitar paradoxos e armadilhas de reformas do Estado de Direito. Segundo a autora, embora a estratégia fragmentada aparente ser mais simples, há riscos significativos causados pelo fortalecimento de um objetivo em detrimento do outro, bem como um obstáculo a novas reformas. Por outro lado, as reformas integrais podem trazer falta de estabilidade e imprevisibilidade quanto a interação de várias mudanças institucionais ao mesmo tempo (PRADO, 2013, p.80/81). Portanto, nem sempre as reformas integrais devem ser escolhidas (PRADO, 2013, p.81):

“Além disso, os efeitos de reformas integrais podem ser extremamente desestabilizadores e algumas vezes difíceis de reverter, o que torna ainda mais preocupante o risco de resultados indesejados (PRILLAMAN, 2000, p. 367)29. Esses efeitos podem superar os riscos gerados pelas armadilhas de reformas fragmentadas. Em virtude disso, reformas fragmentadas podem ser preferíveis a reformas integrais em algumas circunstâncias. Conseqüentemente, aqueles que promovem reformas devem estar conscientes de que a seqüência em que as reformas fragmentadas são realizadas é um aspecto importante da estratégia de mudança institucional, dado que algumas sequências podem oferecer mais riscos de gerar armadilhas do que outras (PRADO & TREBILCOCK, 2009).”

A autora também defende que o fenômeno da path dependence pode criar obstáculos à implementação de reformas integrais, na medida em que influencia as posições de barganha no momento da reforma, limitando a opção apenas a uma reforma fragmentada (PRADO, 2013, p.82). Diante disso, Prado sugere possibilidades para se evitar as armadilhas de processos de reforma institucional, sendo elas: (i) a redução dos custos de conversão para diminuir a resistência de grupos de interesse, (ii) mudanças na composição de grupos de interesse que passam a defender outros valores, (iii) a disponibilização de informação para permitir o convencimento do grupo de interesse.

A autora conclui afirmando que ainda se sabe pouco sobre como promover reformas institucionais para o desenvolvimento. Mariana também conclui que os estudos de caso sobre reformas institucionais, em especial no Brasil, têm um grande potencial para o campo do Direito e Desenvolvimento (PRADO, 2013, p.87–88).

O artigo “O Paradoxo das Reformas do Estado de Direito: quando reformas iniciais se tornam obstáculos para reformas futuras” se insere na chamada perspectiva institucional do desenvolvimento (SILVA e CUNHA, 2013, p. 519), movimento do direito e desenvolvimento que parte do pressuposto de que “as instituições importam”. Além de afirmar a importância das instituições para o desenvolvimento, Prado tenta apontar caminhos possíveis que evitem com que reformas institucionais se tornem reformas-armadilhas, que prejudicam a realização de outras reformas futuras.

O exemplo escolhido pela autora como estudo de caso — a reforma do Poder Judiciário, no que concerne à atuação e controle dos magistrados — é bem ilustrativo do conceito empregado pela autora de uma reforma fragmentada, diante do fato de que não houve, na redação da Constituição de 1988, a inclusão de accountability dos juízes. Contudo, resta a indagação da possibilidade de aplicação dos conceitos de reformas integrais e reformas fragmentadas a outras situações de reformas institucionais em que a concretização de um ou dois objetivos políticos apareça de forma menos evidente.

Ademais, os conceitos formulados pela autora parecem ser bem aplicáveis a situações em que há dois objetivos políticos em jogo, mas não há um endereçamento a uma situação em que três ou mais objetivos que podem ser escolhidos pelos reformadores. Um exemplo disso seria o desenho institucional do Poder Judiciário, no que concerne à gestão processual, campo em que geralmente estão em debate os objetivos de acesso à justiça, eficiência do Poder Judiciário e garantia da segurança jurídica (ASPERTI, 2018, p. 24–31). Resta o questionamento de se uma reforma que garanta dois desses três objetivos seria ainda uma reforma fragmentada, por não incluir todos os objetivos, ou se seria uma reforma integral, por conseguir garantir dois objetivos simultaneamente.

Um possível desdobramento do argumento apresentado por Prado, que seria de grande contribuição para o campo, seria entender de que forma o Conselho Nacional de Justiça é capaz de efetivamente garantir a accountability dos membros do Poder Judiciário e se o fato de a reforma do judiciário ter se dado de forma fragmentada impactou em eventuais falhas do desenho institucional do CNJ, agenda de pesquisa apontada por Silva e Cunha (2013, p. 529–530).

A autora traz uma importante sistematização de mecanismos que podem auxiliar a evitar paradoxos e armadilhas nas reformas do Estado. Nesse sentido, o exemplo da Reforma do Judiciário é, mais uma vez, ilustrativo, tendo em vista que para a criação do CNJ foi necessária a alteração da composição do grupo de interesse, bem como a disponibilização de informações a respeito de problemas do desenho do Poder Judiciário. Diante disso, o diagnóstico de possibilidades para evitar reformas-armadilhas feito pela autora parece acertado.

Ademais, o fato de a autora reconhecer que nem sempre as reformas integrais são possíveis ou preferíveis às reformas fragmentadas demonstra a importância de se pensar as reformas institucionais em uma perspectiva de longo prazo, antecipando e antevendo possíveis consequências negativas e as alternativas para evitá-las. A autora, portanto, apresenta uma forma de viabilizar a aplicação de reformas fragmentadas em situações em que a estrutura institucional não permitiria a implementação de uma reforma integral.

Outro ponto que merece destaque no artigo foi a escolha metodológica de fazer um estudo de caso. Como já dito, a reforma do Poder Judiciário é uma ótima ilustração para o argumento da autora. Além disso, o estudo de caso permite estabelecer uma relação direta entre a realidade prática e o argumento abstrato que a autora pretende construir. Essa relação entre concreto e abstrato é bem trabalhada por Prado, que sempre retoma as características da Reforma do Judiciário em suas explicações.

Diante disso, o artigo de Mariana Mota Prado traz contribuições importantes para o campo do institucionalismo, uma vez que apresenta uma sistematização de tipos diferentes de reformas, bem como mecanismos para evitar armadilhas como consequências dessas reformas. O artigo também expõe as ideias da autora de forma organizada e bem estruturada, o que o torna uma leitura fundamental para aqueles que desejam se aprofundar a respeito das reformas institucionais como instrumento para o desenvolvimento econômico, político e social.

Referências bibliográficas

- Informações disponíveis em: https://www.law.utoronto.ca/faculty-staff/full-time-faculty/mariana-mota-prado. Acesso em:04/04/2021

ASPERTI, Maria Cecília de Araújo. Recursos Repetitivos e Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas: uma análise da perspectiva do acesso à justiça e da participação no processo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018.

PRADO, Mariana. O Paradoxo das Reformas do Estado de Direito: quando reformas iniciais se tornam obstáculos para reformas futuras, Revista De Sociologia e Política , v. 21, n. 45, 2013, pp. 73–90

SILVA, Ivan Candido; GROSS, Luciana. O CNJ e os discursos do Direito e Desenvolvimento, Revista Direito GV, v.9, 2013, pp. 516–533.

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