Direito administrativo e desenvolvimento

Canal Sul
8 min readFeb 8, 2022

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Por: Camila Castro Neves | Revisão: Odara G. Andrade

Resenha crítica sobre o texto Direito administrativo no Brasil, Círculo de Derecho Administrativo/ Revista de Derecho Administrativo PUCP, n. 17, 2019, pp. 202–220 de autoria de Carlos Ari Sundfeld

Em Direito administrativo no Brasil, publicado em 2019 na Revista de Derecho Administrativo da Pontifícia Universidade Católica do Peru (PUCP), Carlos Ari Sundfeld fornece um amplo panorama do direito administrativo nacional. O argumento central do texto é o de que o conceito de direito administrativo, marcado por princípios com origem ideológica radical (p.ex., supremacia do interesse público), deve evoluir para o de um amplo direito estatutário — isto é, um direito comum para o Estado, que não fique sujeito ao veto desses princípios.[1]

O texto é organizado em quatro partes. A primeira faz uma análise sobre a construção do direito administrativo no Brasil, percorrendo os principais marcos desde a independência em 1822 até o presente. O texto mostra que, de início, o direito administrativo foi influenciado pelo sistema francês e marcado pelas noções de unidade, superioridade e autoridade do Estado. A partir de 1930, a legislação administrativa assumiu a feição de “ferramenta do desenvolvimento”, apoiando a articulação do Estado com o setor privado e o crescimento e a modernização da Administração Pública. Nos anos seguintes, foi se adaptando para organizar e reagir a um Estado mais ou menos participativo na economia (como empresário ou regulador).

A segunda parte descreve o escopo de aplicação do direito administrativo no Brasil, isto é, o grau de incidência sobre as organizações ou ações estatais. O autor explica que o direito administrativo é o direito básico da organização e gestão dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, além dos órgãos independentes do Estado. Essa multiplicidade de sujeitos abrangidos pelas regras administrativas explicaria a inexistência de um regime jurídico unitário e homogêneo aplicável a todos eles de forma indistinta.[2]

A terceira parte do texto trata da pluralidade do direito administrativo no Brasil. O autor explica que não há, até o momento, uma grande lei fundadora, como aconteceu em outros Países. Diferentemente do que ocorreu com outros ramos do direito (p. ex., direito civil), também não houve no mundo público a unificação de regime de nenhum tema considerado relevante, como questões envolvendo contratos e propriedade.[3]

Finalmente, a última seção comenta a influência do estatismo e do antiliberalismo no pensamento do direito administrativo brasileiro. O autor demonstra que essas ideias, bastante fortes no passado, ainda refletem no apego de muitos administrativistas e aplicadores do Direito a princípios gerais, como os da supremacia e da indisponibilidade do interesse público. Segundo o argumento, esse apego faria com que, mesmo sem base em normas específicas, sejam adotadas presunções em favor de mais poderes para a Administração, ou mais sujeições sobre os agentes regulados.

O panorama fornecido pelo autor permite uma reflexão sobre em quais pontos, e até que ponto, o direito administrativo está sendo capaz de produzir avanços institucionais e contribuir com o desenvolvimento, e sobre qual seria esse desenvolvimento.

Direito administrativo e desenvolvimento

A relação entre a evolução do direito e o desenvolvimento dos países é um dos temas-chave da literatura de Direito e Desenvolvimento. Em Rethinking the Relation Between Legal and Economic Development de 2008, por exemplo, Curtis Milhaupt e Katharina Pistor sugerem que o direito não é uma base imutável para a atividade econômica. Defendem que a relação entre desenvolvimento jurídico e econômico é cíclica, resultando em processo interativo de ação e reação.[4]

A maneira como determinado sistema jurídico responde às mudanças do mercado (e vice-versa), contudo, não seguiria uma fórmula única. A dinâmica dependerá da forma de organização de cada sistema e da natureza das funções dominantes desempenhadas. É esperado que, com base nessas variáveis principais, as nações apresentem diferenças de rumo significativas.[5]

Aproximando essa construção analítica ao cenário brasileiro, a dinâmica de interação entre direito e desenvolvimento econômico pode ser observada em diferentes ramos ou subdivisões internas do direito nacional, incluindo o direito administrativo. A esse respeito, o texto de Carlos Ari Sundfeld demonstra que a concepção do direito administrativo não é uma base estática em relação ao mercado, tampouco dependente das características de sua origem histórica. Ao contrário, esse direito vem se transformando ao longo das décadas para permitir que o Estado exerça função mais ou menos participativa na promoção do desenvolvimento.

Para ilustrar: o autor expõe que, a partir de 1930, o direito administrativo passou por profundas transformações em razão do aumento da presença do Estado, como por meio da criação de empresas estatais. Ademais, nessa época, “em virtude mesmo da ampliação e dos objetivos desenvolvimentistas (…) o repertório do direito aplicável à administração se tornou sempre mais variado e eclético (quanto aos modelos de organização das entidades estatais, os tipos de contratos, as soluções para a regulação econômica, os regimes funcionais dos servidores públicos etc.)”.[6]

Mais adiante, no final da década de 1990, a abertura internacional da economia brasileira foi acompanhada de uma série de transformações em prol da modernização regulatória. Com um País endividado e sem caixa para realizar investimentos, a solução identificada foi desestatizar a prestação direta de uma série de serviços públicos, passando-os à exploração pela iniciativa privada. No campo da literatura administrativa, desenvolveu-se a ideia de que a Administração poderia receber das leis uma série de competências para ordenar atividades econômicas, caracterizando a noção de regulação administrativa tal como conhecemos hoje. A contrapartida é que elas fossem exercidas por meio de processos administrativos e de estruturas administrativas de caráter técnico, o que levaria à criação das agências reguladoras.[7]

Esses dois exemplos ilustram que, ao longo das últimas décadas, o direito administrativo vem passando por intensas transformações, orientadas a apoiar as escolhas dos governos em busca de desenvolvimento econômico e social. Esse texto não tem por objetivo explicar essas mutações, que são complexas e vem recebendo atenção de autores sob diversas perspectivas de análise.[8] O intuito é jogar luz sobre um aspecto relevante desse processo, aqui considerado como um desdobramento ou desenvolvimento do argumento de Carlos Ari Sundfeld a respeito da necessidade de o direito administrativo evoluir para um amplo direito estatutário, que não fique sujeito ao veto de princípios de origem ideológica radical.

Esse aspecto corresponde à mudança cultural em torno da compreensão e operacionalização do direito administrativo, reconhecendo as suas evoluções e a ampliação das suas funcionalidades. Tão importante quanto o tratamento jurídico conferido a temas que orientam a atividade econômica (como a regulação), é a mudança cultural em torno da sua aplicação. A guinada dos valores que orientam a atividade público-decisória, de modo comprometido com a experiência, se mostra essencial para o desenvolvimento de interpretações, métodos e técnicas racionais que reforcem o esforço de atualização empreendido pela legislação administrativa nos últimos anos, por meio de construção de novas referências normativas, práticas e precedentes administrativos e judiciais.

Essa visão já está presente em parte da literatura especializada, que adota uma perspectiva mais realista ou pragmática do direito público e enxerga o jurídico, suas contribuições e limitações frente à realidade concreta da gestão pública, principalmente por meio de evidências.[9] Os publicistas com visão realista pretendem se contrapor à concepção mais tradicional descrita no texto de Sundfeld, cujo viés idealizante, conceitualista, sistematizador e crente na centralidade do Direito como explicação da vida econômica e social a faz pouco simpática, na interpretação e aplicação das normas administrativas, a aceitar que o mundo real é por demais incerto e imperfeito para ser julgado apenas, ou sobretudo, a partir de idealizações abstratas.[10]

A visão realista ou pragmática do direito abre portas para uma reflexão mais comprometida com a real experiência da gestão pública, permitindo a identificação do que a legislação administrativa vem trazendo de avanço em relação ao passado, e discutindo suas insuficiências e oportunidades de aperfeiçoamento, sem apego ao que há de mais antigo nesse ramo do direito.

A relação entre direito administrativo e desenvolvimento no Brasil, portanto, é marcada por um componente especial: uma mudança cultural que efetivamente considere evidências e o direito positivo para a construção de um ambiente jurídico-administrativo mais adequado às necessidades da gestão pública e do mercado.

  • Camila Castro Neves é mestranda em Direito e Desenvolvimento (FGV DIREITO SP). Pesquisadora (Sbdp). Advogada.

Referências

BAPTISTA, Patrícia. Transformações do direito administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.

MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. 21ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2018.

MENDONÇA, José Vicente Santos de. Direito administrativo brasileiro: do estilo tradicional ao novo estilo. Belo Horizonte: Revista de Direito Administrativo, 2014.

MILHAUPT, Curtis; PISTOR, Katharina. Rethinking the relation between legal and economic development. in law and capitalism: what corporate crises reveal about legal systems and economic development around the world. University of Chicago Press, 2008, capítulos 1 e 2, pp. 17–44.

PALMA, Juliana Bonacorsi de. Segurança jurídica para a inovação pública: a nova Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (lei nº 13.655/2018). Rio de Janeiro: Revista de Direito Administrativo, 2018.

SUNDFELD, Carlos Ari. Direito administrativo no Brasil, Círculo de Derecho Administrativo/ Revista de Derecho Administrativo PUCP, n. 17, 2019, pp. 202–220.

_______________. Direito administrativo para céticos. 2ª ed., São Paulo: Malheiros, 2014.

[1] Para o argumento central do autor: “(…) é preciso que o conceito de direito administrativo ainda evolua no Brasil, para o de um amplo direito estatutário, um direito comum para o estado, aceitando-se aquilo que já é realidade no direito positivo: a existência de regimes múltiplos, concebidos para as situações de que tratam. Esses regimes, construídos democraticamente pelo legislador, não podem ficar sujeitos ao veto de princípios com origem ideológica radical” (SUNDFELD, 2019, p. 219).

[2] “Considerado apenas o conteúdo do ordenamento jurídico, o direito administrativo é relativamente plural, um conjunto de normas reunidas pelo critério subjetivo (um direito estatutário do estado), não propriamente expressivo de um regime jurídico unitário e homogêneo. Mas faz parte da tradição cultural dos administrativistas brasileiros pressupor que as variadas atividades administrativas se sujeitam a um regime jurídico-administrativo “sistematizado”, com “coerência e unidade”. Essa crença vem do século XIX, em que a atuação e a legislação administrativas eram bastante limitadas e homogêneas. Mas o estado atual apenas remotamente se parece com o do passado. As atividades, a máquina e as normas cresceram e se diversificaram exponencialmente; as entidades estatais e também o direito aplicável se fragmentaram. A velha ideia de direito administrativo como sistema único já não é capaz de abarcar tudo isso” (SUNDFELD, 2019, p. 207).

[3] “No caso brasileiro não houve, nem há até o momento, uma grande lei fundadora ou agregadora do direito administrativo — como, em alguma medida, foram as leis de procedimento administrativo ou do contencioso administrativo em outros países. No Brasil, as leis mais gerais de processo administrativo começaram a surgir há poucos anos (no final dos anos 1990) e têm ainda conteúdo e âmbito de aplicabilidade restritos (até porque, além da União, cada Estado e cada Município pode editar a sua). A Constituição mencionou a figura do processo administrativo, para assegurar o contraditório e a ampla defesa a litigantes e acusados. Só que o conteúdo dessas garantias e sua aplicabilidade em cada caso ficaram para ulterior deliberação legal ou regulamentar (e há normas singulares em diversos campos), ou para a interpretação judicial, que está longe de haver consolidado muitas orientações de aplicabilidade realmente geral” (SUNDFELD, 2019, p. 210).

[4]The starting point for our analysis is the recognition that in reality, law is not a fixed endowment in the sense of an unchanging foundation for market activity (…) We believe that a better way to approach legal and economic development in capitalist systems is to view the relationship as a highly iterative process of action and strategic reaction. Historical experience in a diverse range of countries suggests that the path of development is something like this: Market change occurs, typically because of the introduction of new technology, the entrance of new players, a shift in consumer demand, or a scandal that reveals damaging new information about the operation of the market or its participants” (MILHAUPT; PISTOR, 2008, p. 27–28).

[5] Ibidem.

[6] SUNDFELD, 2020, p. 11.

[7] SUNDFELD, 2014, p. 303.

[8] Por exemplo: MEDAUAR, 2018; e BAPTISTA, 2003.

[9] PALMA, 2018.

[10] José Vicente Santos Mendonça diagnostica uma “virada pragmática” no direito administrativo: “o estilo tradicional de direito administrativo apresenta quatro características. Ele é (i) europeizante, (ii) conceitualista, (iii) sistematizador, e (iv) crente na centralidade do direito como explicação da vida econômica e social (…) O novo estilo de direito administrativo possui, assim como o antigo, quatro características básicas. Ele é (i) próximo aos métodos americanos, (ii) pragmatista e empirista, (iii) assistematizador e assistemático, e (iv) decrescente na centralidade do direito como chave de interpretação da vida econômica, política e social” (MENDONÇA, 2014, p. 3).

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