O impacto histórico e cultural no viés ideológico do governo chinês em seu processo de expansão internacional

Canal Sul
5 min readNov 29, 2021

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Por: Jorge Rezende Vaz de Lima. Graduando em Direito na FGV Direito SP e pesquisador no Grupo de Estudos em Direito Internacional Econômico da FGV Direito SP.

Revisão: Theofilo Aquino

Introdução

Não é surpreendente que a China desperte o interesse do mundo inteiro, hoje. Um país que, em poucas décadas, passou de um símbolo de atraso socioeconômico, vítima de grandes fomes e genocídio, para a economia que mais cresce no mundo — e terá o maior Produto Interno Bruto (PIB) Nominal em 2030 [1] — e possui uma grande influência tecnológica e cultural, com aplicativos chineses como o TikTok e o Alibaba, que se tornaram verdadeiros gigantes entre as plataformas digitais.

Contudo, esse crescimento gera uma questão: qual é o ‘grande plano chinês’ para sua ascensão no cenário internacional, e, acima de tudo, quais são os vieses ideológicos que o direcionam. Aqui pretendo responder a essa pergunta. Mas, claro, por ela ser muito complexa, e este ser um mero artigo, não poderei ir tão a fundo, mas sim prover um panorama geral.

A Perspectiva popular e a “Nova Guerra Fria”

Parece haver uma discussão entre a população civil sobre como a China é um herdeiro do legado Soviético, o novo líder do grupo comunista, que deve oferecer oposição ao sistema capitalista liberal centrado nos Estados Unidos da América (EUA). Essa perspectiva foi reforçada pelas ações cada vez mais conflituosas adotadas pelo ex-presidente americano Donald Trump.

Contudo, essa narrativa não permanece de pé, a meu ver, no mundo real. Ela parece derivar de peculiaridades comuns entre as ações chinesas e as da União das Rússia Socialistas Soviética (URSS), além do papel antagônico adotado pelos EUA.

Na realidade, a China não adotou uma posição de líder de um bloco comunista, nem parece querer adotar. Ao contrário, a peculiaridade chinesa vem do fato dela desafiar os EUA em seu próprio jogo. Na verdadeira guerra fria, o embate não era para ver qual país seria o mais rico, mas sim qual sistema socioeconômico triunfaria; os EUA e a URSS não buscavam vitória apenas na economia, ou no campo de batalha, mas sim na mente das pessoas, tornando-se, assim, um conflito realmente dicotômico. Tal característica era auxiliada pela construção de dois blocos, o capitalista — representado pela Organização do Tratado do Atlântico Norte — e o comunista — representado pelo Pacto de Varsóvia [2].

O que ocorre hoje é definitivamente diferente. A China não se opõe aos EUA ideologicamente, ao contrário, parece competir com ele [3]. Grandes empresas tecnológicas chinesas, como Huawei e Alibaba, competem de igual para igual com as americanas, lutando por investimentos e pelo mercado consumidor, enquanto cidades se tornam templos de desenvolvimento e consumo [4].

Isso fica ainda mais intenso quando se observa o projeto da nova rota da seda — também conhecido como Belt and Road Initiative — com a qual a China já gastou mais que o Plano Marshall inteiro, comprovando que ela está se abrindo ao mundo, enquanto os EUA adotam uma visão ‘america first’ [5] — ou pelo menos diziam adotar, mas, com a troca de governos, o futuro permanece incerto.

Por outro lado, quanto à questão de blocos, creio que isso também não se reproduz. A OTAN ainda existe, mas a China definitivamente não tem um bloco ideológico [6]. Poderiam citar o Irã, ou a Rússia, mas esses países são aliados porque convém, e não pelo objetivo em comum de propagar uma ideologia. O que ocorre é que a China se torna uma alternativa aos diversos desinteressados ao sistema americano, uma vez que ela é um poder comercial desprovido dos mesmos critérios ideológicos; contudo, isso não é uma aliança coesa, e sim uma oportunidade da China de explorar novos mercados e acordos.

Ou seja, o que ocorre agora é um clássico conflito entre um poder ascendente e um já estabelecido pela posição do topo. A China, como já dito, está crescendo muito rápido, e isso pode colocá-la em xeque contra os EUA, a superpotência de hoje. Contudo, esse é um conflito que se assemelha mais às guerras púnicas, ou ao conflito Valois-Habsburgo, e não com a Guerra Fria.

O que a China quer? [7]

Essa é uma pergunta complexa que não apresenta resultados fáceis. É instintivo responder que ela quer tomar o lugar dos EUA de destaque no contexto geoeconômico global, mas eu discordo dessa ideia. A China não parece ter o mesmo zelo intervencionista e ideológico, ao contrário, parece querer aumentar sua própria influência econômica. Isso pode ser visto pela nova rota da seda digital, mais promissora que a própria Belt and Road, que estimula a conexão entre a China e diversos países ao redor do mundo, buscando o desenvolvimento mútuo [8].

Essa perspectiva é auxiliada pelas experiências passadas. Mesmo durante os governos de Mao Zedong e Zhou Enlai, nos anos 50 e 60 do século passado, a China se manteve relativamente distante de exercer sua influência diretamente, apesar de passar essa imagem. Mesmo que divulgassem propagandas revolucionárias e anticoloniais, a china se envolveu apenas em uma revolução, pouquíssimo, quando comparada com as extensivas listas de campanhas americanas e soviéticas [9].

Para mim, a resposta definitiva para essa pergunta se encontra ainda mais no passado. A China sempre foi, historicamente, uma superpotência. Contudo, foi uma superpotência isolada. Por razões culturais, geográficas e econômicas, a diplomacia Chinesa sempre adotou um ideal politicamente isolado, visando apenas seu desenvolvimento econômico e reafirmar sua supremacia cultural aos olhos do mundo [10]. Isso pode ser visto nas viagens de Zheng He, o marechal da frota chinesa que viajou por todo o oceano Índico, levando presentes para os diversos povos de lá. Sua viagem tinha esses propósitos, abrir novas relações comerciais e afirmar a supremacia cultural da China. Tal política é, para mim, equivalente ao que a República Popular da China faz hoje, especialmente pela iniciativa ‘Belt and Road’. Não é à toa que muitos dos recursos usados por essa iniciativa visam o desenvolvimento. Local, como a construção de centros culturais no Cazaquistão, por exemplo.

Conclusão

A China oferece uma perspectiva a algo novo, sem igual no sistema atual. Por um lado, ela parece se assemelhar aos outros poderes o suficiente para competir diretamente com eles, mas não o suficiente para perder suas próprias características, tornando-a imprevisível para o mundo afora.

[1] GEROMEL, Ricardo. O Poder da China. 3ª edição: São Paulo, SP. Gente Editora, 2019. Pág: 93–101.

[2] WEISS, Alice. The US — China Confrontation is Not a Cold War. Medium, 2020

[3] Claro, não pretendo dar como encerrada toda a discussão que existe ao redor das influências comunistas na China atual, apenas considero o ponto de comércio internacional como sendo mais semelhante do sistema capitalista liberal.

[4] GEROMEL, Ricardo. O Poder da China. 3ª edição. São Paulo, SP. Gente Editora, 2019. Pág: 133–231.

[5] GEROMEL, Ricardo. O Poder da China. 3ª edição, São Paulo, SP. Gente Editora, 2019. Pág: 116–123.

[6] WEISS, Alice. The US — China Confrontation is Not a Cold War. Medium, 2020.

[7] NEDAL, Dani. SPEKTOR, Matias. O que a China quer? FGV de Bolso, Rio de Janeiro, 1ª ed. 2010.

[8] Idem nota 5.

[9] FOOT, Rosemary. Chinese power and the idea of a responsible state. Tradução de Demerval Sena Aires Júnior. The China Journal, Canberra, v. 45, p. 1–19, jan. 2001. Apud. NEDAL, Dani. SPEKTOR, Matias. O que a China quer? FGV de Bolso, Rio de Janeiro, 1ª ed. 2010.

[10] KISSINGER, Henry. World Order. 1ª ed. New York, New York. 2014. Pg: 1–41.

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