“Outreamento metodológico”: reflexões de Celine Tan sobre silenciamentos epistemológicos na construção do campo do Direito e Desenvolvimento

Canal Sul
7 min readFeb 11, 2022

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Por: Sofia Rolim | Revisão: Odara G. de Andrade

Nesta resenha, refletiremos sobre o artigo Beyond the ‘Moments’ of Law and Development: Critical Reflections on Law and Development Scholarship in a Globalized Economy, de Celine Tan, publicado em 2019 na Law and Development Review, revista científica vinculada ao Law and Development Institute.[1] Tan é uma pesquisadora do Sul Global que fez sua formação acadêmica na Inglaterra, com passagem pelas Universidades de Londres e Warwick. Hoje, ela é professora da Universidade de Warwick e co-diretora do Centre for Law, Regulation and Governance of the Global Economy (GLOBE), além de ser uma das fundadoras do The IEL Collective, espaço que promove reflexões críticas sobre as interações entre o Direito e a economia global.[2] O texto em questão foi produzido recentemente, em um momento em que o Direito Internacional Econômico (IEL) já era reconhecido como um campo de estudos próprio — e não mais apenas uma temática de Direito Internacional Público –, e onde a falta de uma maior pluralidade de perspectivas, metodologias e epistemes já estava sendo discutida por estudiosos da área.[3] O artigo analisa as contribuições teóricas e metodológicas do Direito e Desenvolvimento (D&D) para o campo do IEL, propondo uma reflexão sobre os silenciamentos epistemológicos e um processo que a autora denomina methodological othering, para o qual propomos a tradução de “outreamento metodológico”.

Inicialmente, o texto expõe os três momentos cronológicos do estudo do Direito e Desenvolvimento, associados a uma abordagem top-down sobre o campo[4]. O D&D, no entanto, não estaria limitado a este tipo de perspectiva, havendo autores que se debruçam sobre o estudo do Direito e sua relação com as instituições e os diferentes tipos de desenvolvimento a partir de contextos sociais e geopolíticos mais amplos, realizando pesquisas geralmente associadas com a Sociologia, a Antropologia e o pós-colonialismo, em uma abordagem frequentemente referida como bottom-up. Esta tradição não-ortodoxa de D&D identifica a natureza híbrida das ordens normativas governando relações e estruturas sociais, reconhecendo a influência de normativas formais e informais. Ainda, contempla o trabalho de pesquisadores do Sul Global e reconhece as contingências históricas e sociais presentes na construção do conceito de “desenvolvimento”.[5] Nesse contexto, a investigação das intersecções entre desenvolvimento e IEL emerge como uma importante linha de estudo dentro do D&D, revelando as contribuições metodológicas que este campo pode oferecer aquele.[6]

Tan avalia que a expansão do campo de estudos de IEL revelou significativas limitações das metodologias jurídicas ortodoxas e formalistas: esta abordagem restringiria a análise do IEL ao texto jurídico positivado, impedindo que os pesquisadores examinassem o contexto econômico e sociopolítico no qual as regras escritas operam e os valores morais e normativos por trás da letra da lei, criando, assim, um gap entre o “direito dos livros” e o “direito em ação”. Esta resistência ao olhar empírico e analítico “pode restringir nossa compreensão de como o direito funciona na prática, como o direito é formado e quais dinâmicas sociais, econômicas e geopolíticas sustentam o IEL”, além de “desconsiderar o papel culturalmente produtivo do direito e seu poder constitutivo na formação e sustentação de padrões dominantes de produção e consumo e formas hegemônicas de organização social, econômica e política”[7].

A autora questiona, então, o processo de “delimitação de fronteiras” epistemológicas na disciplina empreendido pelo campo ortodoxo do IEL, que agiria conferindo autoridade a determinadas epistemologias e marginalizando outras. Tan identifica que esta abordagem convencional da disciplina vale-se de técnica denominada outreamento metodológico, através da qual perspectivas que não se encaixem no quadro normativo de análise tradicional são sistematicamente excluídas e inferiorizadas. A construção do conhecimento jurídico sempre esteve vinculado a dinâmicas de poder, com o orientalismo formando a base da teoria Anglo-Europeia do Direito: “o IEL, organizado à imagem do Ocidente, faz parte da “missão civilizadora” mais ampla do Direito Internacional, que busca legitimar e manter a conquista ocidental e o controle sobre, entre outras coisas, os recursos naturais e a reprodução cultural do terceiro mundo”, o que exclui o Sul Global não apenas da infraestrutura do conhecimento, mas também da arquitetura institucional e regulatória da economia global.[8]

A autora analisa, então, de que modo as ferramentas oferecidas pelo campo do D&D podem ser úteis para problematizar a racionalidade e princípios norteadores do IEL convencional. A perspectiva pluralista do D&D permitiria desafiar o essencialismo, o eurocentrismo e o orientalismo jurídico do IEL enquanto campo acadêmico e na prática, atentando para as hierarquias de poder e riqueza e assimetrias sociais e gênero, raça e classe que estruturam a economia global. Esta abordagem incentivaria uma movimentação para além da pesquisa puramente doutrinária e desafiaria a ideia da neutralidade do Direito, legitimando atores do Sul Global como sujeitos e não meramente objetos do desenvolvimento internacional. Tan sustenta que é na recaptura do D&D como um espaço de contestação que poderemos apreciar suas contribuições à pluralização do campo jurídico. Para isso, o campo deve resistir aos seus próprios discursos totalizantes, à práxis instrumentalista e à tendência à linearidade história, além de opor-se à apropriação do conhecimento vindo do Sul e impedir a formação de novas barreiras epistemológicas que obstaculizem o surgimento de novas vozes tanto no campo do IEL quanto do D&D.

As observações críticas de Celine Tan oferecem uma importante contextualização do D&D, sendo o artigo Beyond the ‘Moments’ of Law and Development uma leitura valiosa para quem inicia seus estudos no campo. Os processos de silenciamento epistemológico identificados por Tan são estruturantes na produção de conhecimento no campo do desenvolvimento; no entanto, não se tratam de fenômenos explícitos e tangíveis. O silenciamento, a marginalização, a apropriação e a supressão são lacunas, ausências. Para o olhar desatento — ou para aqueles que, mesmo que involuntariamente, se beneficiam dessa desigualdade — pode não ser simples perceber que o conhecimento científico historicamente produzido na disciplina de D&D não foi inteiramente pautado na neutralidade e mérito científico, mas que os vieses implícitos daqueles que exercem maiormente o poder sistematicamente direcionam os holofotes acadêmicos para aqueles que sempre foram entendidos como sujeitos na produção do saber. A rica contextualização apresentada por Tan nos equipa para melhor identificar as ausências relevantes na construção do conhecimento científico no campo, instigando o leitor a se engajar com o esforço em prol de uma justiça epistêmica em contestação à narrativa europeia do mundo.[9] Sendo assim, parece-me uma discussão de suma importância para se ter contato em um momento inicial dos estudos, permitindo ao aluno refletir criticamente sobre seu papel e sua posição enquanto acadêmico. Além das críticas pertinentes, a autora não só aponta um possível caminho para a superação dos obstáculos identificados como também detalha de que maneira as tradições críticas podem oferecer sua contribuição[10] e atenta para possíveis barreiras a serem evitadas[11].

Já na parte final do texto, Tan aborda uma questão muito importante para se compreender o surgimento e a criação da ideia de “desenvolvimento” no Sul Global: os parâmetros em relação aos quais os Estados “subdesenvolvidos” ou “em desenvolvimento” são avaliados. Para as vertentes críticas do D&D, como as abordagens do Third World Approaches to International Law (TWAIL), “o posicionamento do status de desenvolvimento e dos sistemas jurídicos dos países em desenvolvimento contra o ideal normativo do direito, da economia e da sociedade da Europa serve para legitimar a entrada e o engajamento disciplinar dos estados ocidentais, por meio de agências de desenvolvimento e outras organizações internacionais, em países do terceiro mundo sob o pretexto de progresso ou reabilitação”[12]. Esta ideia será apresentada com maior aprofundamento por Luis Eslava, em sua produção The Developmental State. A partir de uma avaliação crítica e inovadora sobre os impactos do colonialismo, Eslava trabalha o Estado desenvolvimentista como característica comum do Sul Global e argumenta que, no ímpeto modernizante dos Estados latinoamericanos recém-independentes, os países europeus serviram referência em uma avaliação comparativa.[13]

A reflexão de Tan sobre os silenciamentos epistemológicos dialoga com a ideia de violência epistemológica proposta pela teórica indiana Gayatri Spivak; também, ambas conversam com a produção de Edward Said. No artigo “Pode o Subalterno Falar?”, texto clássico nos estudos pós-coloniais, Spivak argumenta que o colonialismo e o imperialismo obstaculizam a construção do subalterno enquanto sujeito. A violência epistemológica é ilustrada no “projeto remotamente orquestrado, vasto e heterogêneo, de se constituir o sujeito colonial como Outro. Esse projeto é também a obliteração assimétrica do rastro desse Outro em sua precária Subje-tividade.”[14] Neste sentido, a população submetida à produção colonial é homogeneizada, destituída de sua história e de sua voz, e reinscrita como “Outro” pelos sujeitos produtores de conhecimento, mesmo quando vinculados a determinadas abordagens teóricas críticas.[15] Ademais, em razão da dominação masculina assegurada pela construção ideológica do gênero, a mulher é colocada “ainda mais profundamente na obscuridade”.[16]

Por abordar questões estruturais da produção de conhecimento nos estudos de desenvolvimento, a contribuição de Celine Tan pode ser apreciada tanto por leitores iniciantes, quanto pelos mais experientes no campo do D&D. Desse modo, podemos fomentar a discussão sobre os silenciamentos epistemológicos, enquanto nos esforçamos para construir uma teoria jurídica crítica e que seja capaz de autocorroer-se sempre, na esperança de que esse movimento permita um desenrijecimento das bases epistemológicas que sustentam o Direito como instrumento puro de dominação.

  • Sofia Rolim é mestranda em Direito e Desenvolvimento pela FGV Direito SP, com bolsa Mario Henrique Simonsen de Ensino e Pesquisa. Pesquisadora do Projeto “Legalismo Autocrático e Estado de Direito” (Project on Autocratic Legalism), vinculado ao Núcleo Teorias e Fronteiras do Direito e Desenvolvimento da FGV Direito SP. Atualmente, desenvolve pesquisa sobre resistência radical e repressão à ação coletiva no Brasil.

[1] Sobre o Law and Development Review, ver https://www.degruyter.com/journal/key/LDR/html. Sobre o Law and Development Institute, ver https://www.lawanddevelopment.net/. Acessos em 11 abr. 2021.

[2] WARWICK UNIVERSITY. Celine Tan. 2019. Disponível em https://warwick.ac.uk/fac/soc/law/people/celine_tan/. Sobre The IEL Collective, ver https://warwick.ac.uk/fac/soc/law/research/centres/globe/ielcollective/. Acessos em 11 abr. 2021.

[3] THE IEL COLLECTIVE. Disrupting Narratives and Pluralising Engagement in International Economic Law Scholarship, Teaching and Practice. 2020. Disponível em https://warwick.ac.uk/fac/soc/law/research/centres/globe/ielcollective/about/. Acesso em 11 abr. 2021.

[4] Tan faz referência ao artigo Mapping Law and Development, de Lizarazo-Rodríguez, publicado em 2017 no Indonesian Journal of International and Comparative Law.

[5] TAN, Celine. Beyond the ‘Moments’ of Law and Development: Critical Reflections on Law and Development Scholarship in a Globalized Economy. Law and Development Review, v. 12, n. 2, 2019. p. 3–5.

[6] Ibid. p. 5–8.

[7] Ibid. p. 10.

[8] Ibid. p. 12.

[9] VERGÈS, Françoise. Um feminismo decolonial. São Paulo: Ubu Editora, 2020.

[10] Ibid. p. 20, entre outras passagens.

[11] Ibid. p. 23.

[12] Ibid. p. 20.

[13] ESLAVA, Luis. The Developmental State: Independence, Dependency, and the History of the South. In The Battle for International Law: South-North Perspectives on the Decolonization Era. Oxford University Press, 2019, p. 4–5.

[14] SPIVAK, Gayatri. Pode o Subalterno Falar? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. p. 47.

[15] Ibid. p. 72.

[16] Ibid. p. 67.

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