Reformas institucionais, a agenda de Rule of Law e o Conselho Nacional de Justiça no Brasil

Canal Sul
7 min readFeb 8, 2022

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Por: Maurício Buosi Lemes| Revisão: Odara G. Andrade

Resenha crítica sobre O CNJ e os discursos do Direito e Desenvolvimento de autoria de Ivan Candido da Silva de Franco e Luciana Gross Cunha

Ivan Candido da Silva de Franco e Luciana Gross Cunha, no texto “O CNJ e os discursos do Direito e Desenvolvimento”, publicado na Revista Direito GV, volume 9, número 2, páginas 515–534, de julho/dezembro de 2013, verificam a aplicabilidade da literatura acadêmica dominante do campo de Direito e Desenvolvimento a uma dimensão específica da Reforma do Judiciário brasileiro: o controle disciplinar exercido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

Ivan Candido realizou seu mestrado na FGV Direito SP, entre 2013 e 2015, com pesquisa que analisou o comportamento decisório do CNJ em matéria disciplinar, durante o período que vai da instalação do Conselho, em 2005, até o final de 2013. Atualmente, Ivan é doutorando em Direito Processual na Faculdade de Direito da USP.

Já Luciana Gross, coorientadora do trabalho de mestrado, é professora da FGV Direito SP, desenvolvendo pesquisas sobre a performance das instituições do sistema de justiça e sua conexão com o ambiente político, administração da justiça e acesso à justiça.

Assim, o texto em análise está inserido no contexto de pesquisa de mestrado de Ivan Candido, sendo um estudo exploratório e crítico sobre a adequação da literatura acadêmica dominante do campo de Direito e Desenvolvimento, no que se refere a reformas institucionais, para explicar a realidade local brasileira, especialmente o controle disciplinar exercido pelo CNJ.

I — A sistematização e os argumentos centrais do texto

Dentre importantes transformações no Judiciário brasileiro ocorridas nas últimas décadas, a Emenda Constitucional nº 45/2004, conhecida como Reforma do Judiciário, foi responsável pelo controle deste Poder e pela introdução do CNJ no ordenamento constitucional.

O Conselho, tal como desenhado institucionalmente, exerce um papel estratégico no gerenciamento do Judiciário. É um órgão administrativo de cúpula, sem qualquer competência jurisdicional, mas com função administrativa centralizada, exercendo controle sobre a atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário, além da fiscalização sobre os deveres funcionais dos seus membros.

A Reforma do Judiciário de 2004 e a criação do CNJ foram influenciadas pelo discurso do Rule of Law, oriundo de uma visão teórica dominante sobre reformas institucionais, que enxerga uma relação direta entre eficiência do Judiciário e desenvolvimento econômico e estabelece uma agenda racionalizadora e centralizadora.

Embora não seja um conceito unânime, o receituário do Rule of Law prega o estabelecimento de um sistema jurídico nos moldes daqueles existentes nos países ricos, com a garantia dos direitos de propriedade, do enforcement dos contratos, da eficiência e da segurança jurídica. O processo de modernização dos países ditos subdesenvolvidos é identificado com reformas jurídicas, que ajustariam estes países ao caminho do desenvolvimento econômico, através do transplante de modelos funcionais de países ricos.

Contudo, tal abordagem dominante pode conter problemas, uma vez que a proteção dos direitos de propriedade e o enforcement dos contratos pelo Judiciário e entendidos como condicionantes necessários para o desenvolvimento econômico podem não ser sempre verdadeiros. Assim, critica-se a predeterminação do caminho, como se houvesse uma fórmula pronta a ser seguida para o desenvolvimento.

Segundo o autor e a autora, a Reforma do Judiciário como um todo privilegiou agendas típicas do Rule of Law. O CNJ, enquanto instrumento de controle externo, está inserido neste contexto de reformas. Sua criação enfrentou resistência de setores da magistratura, tanto pela natureza da sua atividade quanto pela composição do órgão, formado por membros internos e externos à magistratura (advocacia, Ministério Público e sociedade civil).

Os três principais pontos de discordância relativos à presença de conselheiros não juízes no CNJ são: falta de conhecimento específico sobre o funcionamento da justiça, existência de um forte controle interno exercido pelos tribunais, e flagrante perigo à independência judicial.

Sobre a falta de conhecimento específico sobre o funcionamento da justiça, o autor e a autora sustentam que se trata de um argumento tipicamente corporativista, uma vez que os conselheiros não juízes têm saber jurídico considerável, o que indica conhecimento do sistema de justiça. Contudo, a produção teórica da literatura de Direito e Desenvolvimento não identifica este tipo de questão, central na experiência brasileira.

Quanto à existência de um forte controle interno exercido pelos tribunais, trata-se de uma questão federativa: de um lado, uma Reforma que propunha a centralização de diversas atribuições do Poder Judiciário, como o controle disciplinar exercido pelo CNJ; de outro, setores da magistratura entendiam que já havia um controle adequado por parte dos tribunais, exercido de modo local, não havendo a necessidade de um órgão central para esta atribuição. Entretanto, a constante tensão entre poder central e poder local, movimentos de centralização e descentralização administrativa, não são discutidos pela literatura dominante do campo de Direito e Desenvolvimento. O autor e a autora também destacam a disparidade de opiniões dentro da magistratura, o que possivelmente reflete uma situação bastante peculiar à realidade brasileira.

Com relação ao flagrante perigo à independência judicial, trata-se do receio de que o controle do Judiciário pelo CNJ poderia resultar numa menor independência judicial. Neste aspecto, a literatura do Rule of Law traz contribuições, ao defender a garantia da independência do Judiciário, o que traria ganhos à eficiência da prestação jurisdicional e, portanto, maior desenvolvimento econômico.

A literatura dominante do campo de Direito e Desenvolvimento, além de não responder adequadamente às particularidades locais, insiste em uma relação causal entre Reforma do Judiciário e crescimento econômico. Todavia, o autor e a autora argumentam que um órgão eficiente de controle externo do Judiciário dificilmente poderia significar um melhor desenvolvimento econômico de um país, havendo pouco material empírico capaz de comprovar tal correlação.

Por fim, o autor e a autora lançam algumas contribuições que a literatura do campo de Direito e Desenvolvimento poderia trazer para a análise do CNJ, em particular, e para reformas institucionais, em geral, considerando diagnósticos de realidade alternativos e avaliações empíricas consistentes. Tais ideias estão associadas a um maior aprofundamento pela academia de temas como: o comportamento decisório do CNJ, considerando os conselheiros oriundos de diferentes carreiras; o desempenho das funções centrais da Presidência e da Corregedoria Nacional de Justiça; os limites entre controle disciplinar exercido pelo Conselho e independência judicial; a permeabilidade do CNJ à participação da sociedade civil; a relação entre CNJ e Supremo Tribunal Federal.

II — Reação/reflexão sobre o texto

As ideias e questões centrais abordadas no artigo exemplificam o modo como a produção acadêmica e teórica sobre Direito e Desenvolvimento tem sido aplicada no contexto de determinadas políticas públicas. No caso, trata-se de uma análise crítica sobre a compatibilidade de tais marcos teóricos dominantes relativos ao Rule of Law e às mudanças institucionais ao contexto da Reforma do Judiciário brasileiro, em geral, e ao controle disciplinar exercido pelo CNJ, em particular. Assim, verifica-se a pertinência de tal literatura às condições e particularidades locais em países do Sul Global. No contexto da disciplina “Introdução ao Direito e Desenvolvimento”, o texto contribui para a compreensão das agendas de Direito e Desenvolvimento em uma situação concreta e específica.

O texto oferece um mapeamento das principais disputas envolvidas na criação do CNJ no Brasil, as controvérsias geradas e o modo como foram encaminhadas para que a criação e consolidação do CNJ fossem possíveis. Elucida, também, a maneira como o campo teórico dominante de Direito e Desenvolvimento concebe as reformas institucionais e o papel reservado ao Judiciário neste cenário.

Até o momento de estudo do texto, não tinha conhecimento de que a Reforma do Judiciário e a criação do CNJ no Brasil foram influenciadas pelas concepções teóricas de Rule of Law. Num primeiro momento de leitura, tive certa dificuldade em compreender a correlação proposta entre controle disciplinar exercido pelo CNJ e o marco teórico mais amplo de Direito e Desenvolvimento. Posteriormente, em outras camadas de leitura e com maior apropriação do texto, fui percebendo que tal correlação passa por algumas mediações, como reformas institucionais do Rule of Law, papel atribuído ao Judiciário em contextos de desenvolvimento e controvérsias locais suscitadas pela criação do órgão.

O texto é bem escrito, fundamentado e atinge o objetivo ao qual se propõe, percorrendo cada etapa anunciada no resumo e introdução. Contudo, para ser inteligível para pessoas que não têm familiaridade com o campo, creio que valeria a pena desenvolver e explicitar melhor a correlação entre controle disciplinar exercido pelo CNJ e o marco teórico mais geral de Direito e Desenvolvimento.

O artigo anuncia que diferentes interesses estiveram envolvidos no processo de tramitação da Proposta de Emenda à Constituição que resultou na Reforma do Judiciário e na criação do CNJ. Mas não aprofunda em algumas questões que me parecem relevantes e pertinentes: que atores defenderam tais interesses? Qual a sua origem? Que discursos e estratégias mobilizaram? Houve propostas de desenhos institucionais alternativos à atual configuração do CNJ? Se sim, quais? Por que tais propostas não alcançaram êxito?

Talvez tais questões não coubessem nos propósitos e limites do artigo aqui estudado, mas compreendê-las me parece central para o avanço do debate sobre a função e as expectativas depositadas em um Conselho de Justiça em uma sociedade estruturalmente desigual, e para a formulação de teorias em Direito e Desenvolvimento com maior aderência à realidade brasileira.

Recomendo a leitura do texto, uma vez que fornece um exemplo bem fundamentado sobre a relação entre o campo teórico e acadêmico de Direito e Desenvolvimento e sua aplicabilidade a uma faceta de uma política pública, qual seja, a de prestação de justiça.

  • Maurício Buosi Lemos é Doutorando vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV Direito SP), com Bolsa Mario Henrique Simonsen de Ensino e Pesquisa e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), na Linha de Pesquisa: Instituições do Estado Democrático de Direito e Desenvolvimento Político e Social. Realiza projeto de pesquisa sobre acesso à justiça e participação dos núcleos especializados da Defensoria Pública do Estado de São Paulo na produção de políticas públicas

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